quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Espíritos, Cérebros e Mente

Evolução Histórica dos Conceitos sobre a mente


Há muito tempo os homens ligam o cérebro com as funções mentais, crânios com perfurações feitas em vida, com sinais de cicatrização, foram encontrados em sítios que datam de até 10.000 anos atrás. Muito provavelmente, essas trepanações eram feitas com o intuito de possibilitar a saída de maus espíritos, que estariam atormentando o cérebro. A maior e mais importante prova documental desse conhecimento foi extraído do famoso Papiro Cirúrgico de Edwin Smith, que foi escrito no Egito por volta de 1.600 AC. Ele contém as primeiras descrições conhecidas das suturas cranianas, da superfície externa do cérebro, do fluido cerebroespinal e das pulsações intracranianas. O autor do papiro descreve 30 casos clínicos de trauma cranioencefálico e da medula, notando como as várias injúrias cerebrais eram associadas a mudanças da função de outras partes do corpo, especialmente os membros inferiores, tais como contraturas hemiplégicas, paralisia, incontinência urinária, priapismo e emissão seminal associada a trauma da coluna.

Na cultura ocidental, Alcmaeon de Crotona (Sec. V A.C.) foi possivelmente o primeiro a localizar no cérebro a sede das sensações. Para ele, os nervos ópticos, que seriam ocos, levavam a informação ao cérebro, onde cada modalidade sensorial teria seu próprio território de localização.

Ainda no século V A.C., Demócrito, Diógenes, Platão e Teófrasto punham no cérebro o comando das atividades corporais. Também entre os gregos, Herófilo (335-280 A.C.) dissecou e escreveu sobre o cérebro e foi o primeiro a descrever suas cavidades, os ventrículos cerebrais, que ele associou com as funções mentais. Essa idéia, como veremos, teve enorme importância na “neurofisiologia” dos séculos que se seguiram.

Hipócrates (460-379 AC) acreditava que o cérebro era a sede da mente: "Deveria ser sabido que ele é a fonte do nosso prazer, alegria, riso e diversão, assim como nosso pesar, dor, ansiedade e lágrimas, e nenhum outro que não o cérebro. É especificamente o órgão que nos habilita a pensar, ver e ouvir, a distingüir o feio do belo, o mau do bom, o prazer do desprazer. É o cérebro também que é a sede da loucura e do delírio, dos medos e sustos que nos tomam, muitas vezes à noite, mas ás vezes também de dia; é onde jaz a causa da insônia e do sonambulismo, dos pensamentos que não ocorrerão, deveres esquecidos e excentricidades"

É uma espantosa e clarividente declaração, tão moderna quanto a que qualquer neurocientista atual poderia fazer. É de se surpreender, portanto, que os filósofos e médicos posteriores a Hipócrates, por muitos e muitos séculos, tenham regredido notavelmente, ao deslocar a sede da mente para o coração.

Aristóteles (384-322 A.C.), divergiu de seus contemporâneos e afirmava que o coração era o órgão do pensamento, das percepções e do sentimento, enquanto o cérebro seria importante para a manutenção da temperatura corporal, agindo como um agente refrigerador. Até hoje somos influenciados por essa noção, quando nos referimos ao símbolo do amor como sendo um coração, quando dizemos que estamos de "coração partido" ou de "coração pesado" .

Galeno (130-200) rejeitou as ideias de Aristóteles, argumentando que não tinha sentido acreditar que o cérebro tivesse uma função de esfriar as paixões do coração. Galeno, foi um intenso dissecador (o animal de escolha era o boi) e prestou muita atenção às meninges e às cavidades encefálicas e menos atenção ao cérebro em si. Naquela época, trabalhando com material não fixado, era natural que os ventrículos chamassem muita atenção, pois o encéfalo aparecia apenas como uma geleia amorfa. Nemésio (320 D.C.), bispo de Emesia, na atual Síria, tomou as ideias de Galeno e baseou nos ventrículos as faculdades intelectuais. Em seu livro “Da Natureza do Homem”, onde ele tratava da fisiologia com base na medicina grega, consta que a alma não tem uma sede, mas as funções da mente, sim. Os ventrículos cerebrais, seriam responsáveis pelas operações mentais, desde a sensação até a memorização. O primeiro par de ventrículos seria sede do “senso comum”. Eles recebiam as informações vindas dos órgãos sensitivos e ali se dava a análise sensorial. As imagens formadas eram levadas ao ventrículo médio, sede da razão, do pensamento e do juízo. Só então entrava em ação o último ventrículo, sede da memória.

Até a Idade Média, as figuras representando o cérebro mostram com destaque os ventrículos cerebrais. A ideia de que espíritos circulavam pelos ventrículos, favorecida pela Igreja, foi predominante até a época do Renascimento. Durante muitos séculos, portanto, falava-se em três ventrículos cerebrais, sendo os ventrículos laterais considerados em conjunto.

Leonardo Da Vinci (1472-1519) que tinha o hábito da dissecação, mostra nos seus desenhos os ventrículos laterais separados e não como um ventrículo único. Da Vinci acreditava que as sensações deveriam localizar-se no ventrículo médio (IIIo. ventrículo) porque para suas imediações converge uma grande quantidade dos nervos cranianos.

Só no século XVI, Andreas Vesalius (1514-1564), autor do monumental tratado de anatomia “De Humani Corporis Fabrica”, rompe com a teoria da localização ventricular dos processos mentais argumentando que outros mamíferos (como o asno) têm a mesma organização anatômica e não possuem as mesmas capacidades intelectuais. Contudo, ele continuou a acreditar que os ventrículos cerebrais eram um local de armazenamento dos espíritos animais, de onde eles partiam para, através dos nervos, atingir os órgão sensoriais ou de movimento.

No século XVII os espíritos ainda dominavam as funções mentais. Nesta época René Descartes (1596-1650) escolheu o corpo pineal não propriamente como a sede da alma, mas como o local da sua atividade. A pineal foi escolhida por ser um órgão ímpar, ao contrário das outras estruturas cerebrais, que são bilaterais. A neurofisiologia de Descartes, é bastante independente da neuroanatomia, que ele deliberadamente ignorava e é baseada nos espíritos animais e nos poros e vias pelos quais eles fluem para exercer suas ações. Segundo ele, “as partículas mais rápidas e ativas do sangue” eram levadas pelas artérias do coração para o cérebro, onde se convertiam num gás ou vento extremamente sutil, ou uma chama muito pura e ativa, constituindo o “espírito animal”. As artérias deveriam reunir-se em torno de uma glândula situada no centro do cérebro: a pineal.

Descartes imaginava que filamentos existentes nos nervos (que seriam tubos) poderiam operar como válvulas, abrindo poros que deixariam fluir os espíritos animais. Uma estimulação na pele, por exemplo, agiria sobre esses filamentos, provocando uma contração como resposta reflexa. Do cérebro os espíritos animais viajariam através dos nervos até o músculos, que seriam inflados, provocando o movimento. Esse seria o mecanismo para os atos involuntários.

Um reflexo segundo a fisiologia de Descartes. O fogo desencadeia movimentos dos espíritos animais através de nervos ocos. Esse deslocamento abre poros no ventrículo , deixando fluir espíritos que irão então dilatar o músculos da perna, provocando o seu afastamento.

Ilustração do livro de René Descartes, De Homine, publicado em 1662. As informações visuais são levados ao cérebro por nervos ópticos ocos. Daí elas chegam à pineal, que regula o fluxo do espíritos animais através dos nervos. Os espíritos viajarão até os músculos do braço, provocando um movimento.

O sono e a vigília, segundo Descartes (1662), dependeria do fluxo dos espíritos animais no cérebro, regulado pela pineal. No desenho superior há pouco fluxo dos espíritos e o cérebro encontra-se flácido, durante o sono. O desenho inferior representa o estado de vigília, quando há grande influxo dos espíritos animais e a matéria cerebral está distendida.

A idéia de que “espíritos animais” percorriam os nervos, que tinha origem nos gregos, permaneceu corrente até o Século XVIII, quando ficou demonstrada a natureza elétrica na condução nervosa, destacando-se para isso o trabalho de Luigi Galvani (1737-1798).

Já no século seguinte, o de Emil du Bois-Reymond (1818-1896). Du Bois-Reymond realizou seus estudos sobre transmissão nervosa na década de 1840 e na década de 1870 propôs que os órgãos efetuadores seriam excitados pelos nervos através de corrente elétrica, ou de substâncias químicas liberadas pelas terminações nervosas.

Quanto à importância do tecido cerebral para as funções nervosas, os conhecimentos fundamentais também se desenvolveram no século XIX. Theodor Schwann (1810-1882), que descreveu a bainha de mielina, foi quem primeiro propôs que todo o corpo seria formado de células. Sua teoria celular teve ampla aceitação para todos os tecidos, com exceção do sistema nervoso, onde se acreditava que as células eram contínuas, formando um grande sincício.

Somente com a descoberta das técnicas de impregnação das estruturas nervosas pela prata (método de Golgi) foi possível uma observação mais acurada, resultando nos trabalhos de Santiago Ramón y Cajal (1852-1934), que já em 1889 argumentava que as células nervosas eram elementos isolados. Em 1891 Wilhelm von Waldeyer (1836-1921) cunhou o termo “neurônio” para designar a unidade anatômica e funcional do sistema nervoso.

Finalmente veio a descoberta, por Charles Scott Sherrington (1857-1952), dos espaços existentes nas junções entre células nervosas ou entre estas e as células musculares. Sherrington chamou essas estruturas de “sinapses”.

Como se vê, há menos de três séculos o avanço do conhecimento permitiu que nossos cérebros e mentes deixassem de ser assombrados pelos espíritos gerados por nossa ignorância.

Referências:

TEITELBAUM Philip. Psicologia Fisiológica. Tradução ZAHAR EDITORES, RJ, 1969.

WERTHEIMER, Michael. Pequena História da Psicologia. SP, 1989

http://www.cerebromente.org.br/n01/frenolog/frengall_port.htm

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